A medicina veterinária é considerada por muitos uma das profissões mais bonitas e interessantes. A sociedade enxerga o médico-veterinário como aquele que cuida da saúde dos animais e zela pelo seu bem-estar. Ocorre que a medicina veterinária é um curso de formação generalista, que estuda várias espécies, mas que, além disso, abrange também as áreas de saúde pública e produção animal.
Na minha experiência de quase vinte anos como professor no curso de graduação de medicina veterinária, observei que a maioria dos alunos anseia por cuidar dos animais, tratar deles e salvá-los. Todavia, os currículos das diferentes universidades cedem espaço para disciplinas obrigatórias relacionadas à criação e ao manejo de animais para a produção de alimentos e outros derivados, conforme as diretrizes do MEC. Essa metodologia não raro causa desconforto e, em alguns casos, o abandono do curso. Mas, em geral, os alunos acabam percebendo a falta de lógica com naturalidade, acostumam-se com isso e são tomados pelo sentimento de que “as coisas são assim mesmo”. Claro que minha opinião está longe de ser unânime, mas estou certo de que é compartilhada por muitos colegas.
Trata-se de um assunto polêmico, que em geral causa polaridade nas discussões. É, pois, o objetivo deste texto propor a reflexão e o debate a respeito da identidade e vocação do curso de medicina veterinária perante os novos tempos. Porém, para entendermos o cenário atual, é importante fazer uma revisão histórica da origem da profissão e das mudanças socioculturais ocorridas nas últimas décadas.
História da veterinária
O fenômeno da domesticação foi tão importante quanto o da agricultura para a civilização humana, que se construiu com o uso dos animais domésticos, seja no transporte, na guarda, na alimentação ou no vestuário. E, na maioria das sociedades, os animais sempre foram valorizados pela sua utilidade para o homem. É consenso que a “arte de curar” animais surgiu pela necessidade de tratar os cavalos quando feridos ou mancos – ou seja, quando não conseguiam cumprir sua função como arma de guerra ou meio de transporte. No Brasil, a origem da veterinária não foi diferente e se deu por necessidades humanas. D. Pedro II, motivado por um surto de mormo nos equinos da guarda imperial, criou a veterinária militar, pois a zoonose estava acometendo os soldados. Tanto que o patrono da veterinária militar é um médico sanitarista. Então, em 1910, foi criada em primeiro lugar a Escola de Veterinária do Exército, e depois a Escola Superior de Agricultura e Medicina Veterinária, o que evidencia a origem da profissão ligada à agropecuária e à saúde pública, ou seja, em benefício do ser humano.
Na Lei Federal nº 5.517 de 1968, que regulamentou a profissão, observa-se a relevância da profissão na saúde pública e na cadeia produtiva de alimentos de origem animal. Nesse contexto, é evidente que a profissão, na sua origem, tratava os animais conforme sua utilidade, como um meio para atingir um fim, que era o bem-estar humano. Um fenômeno amplo, resultado de um processo histórico ligado à crença no antropocentrismo teleológico, ou seja, de que os animais existem para nos servir, e de que o homem é um ser superior e tem o direito de explorar a natureza. Conclui-se que a medicina veterinária teve sua origem ligada à saúde e ao bem-estar do ser humano, apesar de o imaginário coletivo pensar o profissional somente como médico e defensor dos animais.
Diretrizes pedagógicas
Diante desse contexto histórico, não é de surpreender que atualmente o MEC e o CFMV orientem as universidades no sentido de oferecerem uma formação generalista, num esforço para que o médico-veterinário exerça uma série de atividades ligadas à produção de alimentos de origem animal e à saúde pública – o que faz com que a função médica seja ensinada na mesma grade curricular com a lógica zootecnista e da saúde pública. Segundo as diretrizes curriculares (Resolução do CNE/CES nº 1 de 18 de fevereiro de 2003 e Lei nº 5.517/68), o perfil do médico-veterinário baseia-se na tríade “veterinário para a saúde”, “veterinário para o alimento” e “veterinário para o planeta” – um perfil inclusive recomendado pela Associação Mundial de Veterinária (WVA). Todavia, o que se percebe, na maioria, são cursos com ênfase nas áreas de clínica e cirurgia, além do fato de a maioria dos formandos preferirem essas áreas de atuação, atendendo a uma demanda atual de mercado.
Ciências rurais ou medicina?
Assim, consagrou-se na profissão a dicotomia médico x zootecnista, um paradoxo, pois enquanto uma área visa o tratamento do paciente para lhe salvar a vida pelo seu valor como indivíduo, a outra vê os animais como produto e fonte de lucro, sem individualidade, como rebanho, plantel, como um número. Uma se esforça para salvar a vida e diminuir o sofrimento; a outra, para aumentar a produtividade, as taxas de crescimento e ganho de peso, ou seja, para produzir e reproduzir mais.
Na lógica zootecnista, a doença significa perda e menor lucro, tanto que o descarte de animais é uma rotina. Já na medicina, a doença representa a dor, o sofrimento e a morte. A produção, quando trata uma doença, tem por objetivo evitar o prejuízo, valorizando o animal apenas pelo seu valor zootécnico. Nesse cenário, o veterinário tem a função de maximizar o desempenho e reduzir os custos na medida do possível. E, em geral, não há nenhum dilema ético nesse comportamento. Inclusive, esse é o objetivo do conhecimento técnico.
Na produção de animais, o manejo, a prevenção e o tratamento de doenças visa somente evitar perdas econômicas, enquanto a nutrição e a genética visam aumentar os ganhos no menor tempo possível. Assim, os animais com doenças crônicas ou inférteis, aqueles considerados improdutivos, perdem a utilidade e são descartados. Analgesia e anestesia representam custos, por isso vários procedimentos são realizados somente com contenção física dos animais, como: castração, descornamento, debicagem, caudectomia, marcação a ferro, retirada do globo ocular. É rara, senão ausente, qualquer consideração moral em relação aos animais explorados na criação animal – o que acredito ir de encontro às expectativas da maioria dos ingressantes em nosso curso de medicina veterinária.
Vale lembrar o olhar sanitarista da saúde pública em relação aos animais, que não são vistos como indivíduos e cujo tratamento raramente é uma opção a considerar. Em muitos casos, o sacrifício de animais visa evitar prejuízos econômicos ou ser uma solução politicamente prática, mesmo quando comprovadamente ineficaz do ponto de vista sanitário.
Com esse modelo de currículo, os cursos acabam por dessensibilizar a maioria dos alunos em relação ao sofrimento e ao valor da vida animal. Peter Singer observou que as pessoas que têm empatia pelos animais, quando fazem o curso, acabam por ter a sensibilidade embotada. Recordo-me da minha graduação, em uma aula prática, quando vários alunos choraram ao testemunhar o abate bovino. Esse ensino ambíguo é uma discrepância absurda na definição da identidade profissional 1.
Uma nova medicina veterinária?
No século XX, o surgimento de movimentos como o da ética no tratamento dos animais e o crescente debate sobre os seus direitos refletiu as mudanças da sociedade em relação a esse assunto, além de um novo olhar dos ingressantes no curso de medicina veterinária. E esses fenômenos não podem ser subestimados.
A inclusão do termo “medicina” e a passagem das ciências agrárias para a área das ciências da saúde foram sinais dessa mudança. Em 1998, a medicina veterinária já havia sido reconhecida pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS) como profissão da área de saúde, indo ao encontro dos conhecimentos da ciência do bem-estar animal. Pois desde a década de 1990, os estudos de etologia cognitiva vêm desconstruindo a lógica cartesiana exacerbadamente materialista que nos legou a crença de que os animais eram meros autômatos, que não sentiam dor e não tinham qualquer tipo de sentimento. A declaração de consciência dos animais contida no “Manifesto de Cambridge”, em 2012, reflete o reconhecimento das capacidades mentais dos animais pelas neurociências. Curioso também lembrar a alteração feita no texto do juramento do médico-veterinário, pois quando o fiz, no ano de 1994, havia menção somente ao “bem-estar humano”. O que só foi mudar em 2002, quando o Código de Ética, resolução do CFMV, incluiu a expressão “bem-estar animal”.
Outro fenômeno observado nos cursos a partir dos anos 1980 foi o maior ingresso das mulheres, culminando com uma maioria feminina nos dias de hoje, e muitos dos alunos são voltados para as áreas de medicina e cirurgia. Isso contrasta com o passado, quando a presença masculina e rural era maciça – ou seja, o curso está refletindo uma mudança sociocultural. Acredito que tudo isso seja reflexo de uma fase em que o paradigma do animal como “coisa” começou a ser questionado, provocando mudanças de comportamento e de atitudes em relação aos animais. É, pois, um movimento em curso que não pode ser subestimado.
Em vez do modelo generalista, os projetos pedagógicos poderiam ser alterados no sentido de fortalecer a lógica da medicina veterinária curativa de forma que o aluno pudesse escolher a área de atuação sem precisar dispender tempo, energia e recursos financeiros em áreas que não tem interesse. Afinal, a maioria dos alunos que ingressam no curso buscam isso. Por outro lado, os alunos que têm interesse nas atividades relacionadas à produção animal poderiam fazer um curso que atendesse às suas expectativas – ou, ao menos, que essas disciplinas fossem optativas. Os currículos não são dogmas que nunca mais serão alterados. Com certeza o tema é difícil, pois daí sua natureza paradoxal.
Considerações finais
Ao repensar o curso e a missão do veterinário podemos concluir que a ciência do bem-estar animal já proporcionou grandes avanços, mas ainda se percebe o atraso na discussão sobre o status moral dos animais, apesar de ser uma das preocupações da sociedade neste século. O sofrimento dos animais deixou de ser preocupação de poucos para ser um grande debate das sociedades atuais e a medicina veterinária não pode ficar presa ao passado. Afinal, no modelo atual, os alunos têm que despender energia e tempo para estudar disciplinas que não despertam o seu interesse e muitas vezes lhes provocam dilemas morais e estresse. Certamente, a pecuária ainda é um forte setor do mercado, mas há evidentes sinais de que este protagonismo não será eterno. As crescentes discussões sobre os impactos sobre o meio ambiente, a relação do consumo de produtos de origem animal com doenças, a consideração moral dos animais e a consequente mudança nos hábitos alimentares provocarão mudanças neste cenário. Ainda chegará o dia que os animais não serão considerados “coisas” e a medicina veterinária deverá estar adequada a esses novos tempos.
Fontes:
01-ROCHA, C. V. Ética e regulamentação profissional do médico veterinário. Clinica Veterinária, ano XIX, n. 1 111, p. 98-99, 2014. ISSN: 1413-571x.
02-PAIXÃO, R. L. ; MOLENTO, C. F. M. ; PALHA, M. D. As mulheres são mais sensíveis às questões que se relacionam ao bem-estar animal. Revista CFMV, ano
XIX, n. 58, p. 14-18, 2013. ISSN: 1517-6959.
Texto publicado na revista Clínica Veterinária, Edição 139, março/abril – Ano XXIV, 2019.