Dissecção da resolução do CFMV sobre maus-tratos, abuso e crueldade

A presente Resolução do CFMV de número 1236 de 2018 que trata do crime de maus-tratos aos animais teve por objetivo definir o que são maus-tratos aos animais e apesar da importância do dispositivo, várias questões merecem comentários. O presente texto não tem a pretensão de esgotar o tema, mas somente chamar a atenção do leitor para algumas questões e provocar uma leitura atenta do dispositivo, pois é fundamental na atuação do médico veterinário.

Antes de qualquer observação é importante salientar que a Resolução tem um viés Bem-estarista e não Abolicionista, como desejaríamos. Mas é compreensível dentro do contexto em que a medicina veterinária está inserida e de como a legislação e a maioria da sociedade ainda enxerga os animais.

A normativa se fundamenta na Constituição Federal de 1988, no seu art. 225, que veda a crueldade contra os animais e também no artigo 32 da Lei 9605 de 1998 (Lei de Crimes ambientais), que criminalizou os maus-tratos aos animais. Também se observa que foi orientada pelo Conceito das 5 Liberdades.

A necessidade da Resolução foi providencial devido a celeuma em torno do texto do artigo 32 da Lei 9605, pois quando afirma ser crime abusar e maltratar animais deixa margem à interpretação do que são estas condutas. Logo, para os operadores do Direito o texto da lei fere o Princípio Penal da Taxatividade, que afirma que o dispositivo da lei que torna crime uma conduta deve ser claro e preciso, ou seja, não deixar margem para interpretações diferentes. Assim, se discutia o que seria afinal “abusar ou maltratar”? O próprio tema “crueldade” vedado pela Constituição deixa margem para subjetividade. Logo, no Direito Penal esse artigo é considerado um “tipo penal aberto”, isto é, que exige a interpretação do juiz no caso concreto. O que para outra parte da doutrina não está errado, pois não como o legislador definir todas as condutas que seriam maus-tratos, visto a criatividade humana para atos de crueldade. De toda sorte, pode-se perceber a dificuldade na prática, pois casos de abandono de animais alguns consideravam maus-tratos e outros não.

A Resolução também se fundamenta:

– No fato de que médicos veterinários são os profissionais capacitados para identificar, caracterizar e diagnosticar casos de crueldade, abuso e maus-tratos em animais;

– Que os animais devem ser tratados observando-se os princípios de ética e bem-estar animal;

– Que bem-estar animal é um conceito que envolve aspectos fisiológicos, psicológicos, comportamentais e do ambiente sobre cada indivíduo;

– Na crescente preocupação da sociedade quanto ao bem-estar animal e o impedimento ético e legal de crueldade, abuso e maus-tratos contra animais.

Foram definidos os conceitos de:

Maus-tratos: qualquer ato, direto ou indireto, comissivo ou omissivo, que intencionalmente ou por negligência, imperícia ou imprudência provoque dor ou sofrimento desnecessários aos animais.

Crueldade: qualquer ato intencional que provoque dor ou sofrimento desnecessários nos animais, bem como intencionalmente impetrar maus tratos continuamente aos animais.

Abuso: qualquer ato intencional, comissivo ou omissivo, que implique no uso despropositado, indevido, excessivo, demasiado, incorreto de animais, causando prejuízos de ordem física e/ou psicológica, incluindo os atos caracterizados como abuso sexual.

Animais sinantrópicos – animais que se adaptaram a viver junto ao homem, a despeito da vontade deste. Podem causar prejuízos econômicos, transmitir doenças, causar agravos à saúde do homem ou de outros animais, portanto, são considerados, em muitos casos, indesejáveis e problemas de saúde pública e/ou ambiental.

 

Comentários:

1. Atos omissivos também serão considerados maus-tratos, como por exemplo deixar de fornecer água e comida, deixar de proporcionar tratamento veterinário adequado.

2. A norma prevê que atos culposos, ou seja, sem intenção do resultado, causados por negligência, imperícia ou imprudência também configuraram o crime. Aqui há um sério problema, pois o Direito penal só aceita crimes culposos quando há expressa previsão em texto de lei (em sentido estrito) e a resolução não é uma lei (é infra-legal). Logo, deveria haver uma lei para alterar o texto do artigo 32 da lei 9605/98 e acrescentar a forma culposa. É uma questão bem jurídica, mas que em um processo de acusação fará diferença. Um exemplo: pelo texto da resolução uma pessoa que esquece o cão dentro do carro e ele morre, estaria cometendo o crime por negligência, pois deixou de zelar pelo seu cão. Mas não foi intencionalmente, foi por descuido, uma forma culposa, o que o artigo da Lei não fez previsão. Logo, não seria considerado crime. Agora será uma questão de aguardar e ver qual será o posicionamento da jurisprudência dos tribunais sobre o tema.

3. As expressões uso despropositado, desnecessário, incorreto continuam sendo subjetivas. Quem define o que é uso correto? Uso necessário? Sofrimento desnecessário?

4. Interessante e bem-vindo o reconhecimento do sofrimento psicológico, para além do sofrimento físico. Afinal, são muitos os animais que sofrem com isolamento, confinamento, medo e estresse.

5. Também o reconhecimento da zoofilia como forma de maus-tratos. Pois sabemos que a prática é considerada por muitos como “cultural”, especialmente no meio rural, onde aproximadamente 50% dos jovens iniciam sua vida sexual com animais.

6. No caso dos animais considerados sinantrópicos é um problema admitir a morte de animais somente por questões econômicas. Não há como falar em ética animal e defender esse argumento. É uma explícita forma de especismo, pois ninguém admite sacrificar um humano que tenha uma doença transmissível. Eticamente poderíamos aceitar essa prática nos casos de doenças sem qualquer forma de tratamento e que se transmitida ao humano provocaria morte certa, o que não é o caso na grande maioria das zoonoses.

7. Existe a ideia de um tipo de “sofrimento considerado necessário” e outro não, mas isto acontece em função das necessidades humanas. É questionado, pelos defensores dos direitos dos animais, o que é um “sofrimento necessário”, pois afirmam que ao aceitar este conceito, assim como, o tratamento “humanitário” que conferimos aos animais de fazenda, a sociedade se beneficia da exploração animal e de seu sofrimento.

8. Recordemos que não há lei que proíba matar animal doméstico. A lei de crimes ambientais no art. 29 afirma ser crime: “Matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo com a obtida. Ou seja, os animais domésticos e domesticados podem ser mortos, pois só é crime o sofrimento desnecessário ou matar com crueldade com práticas que sejam consideradas maus-tratos. Então, façamos uma reflexão: se é considerado maus-tratos pelo art. 32 da lei 9605/98 “ferir”, como há de se matar um animal sem feri-lo. Mesmo no chamado “abate humanitário” há toda sorte de machucaduras até o golpe final que é a jugulação cruenta. Como afirmar que um golpe com uma faca afiada não é “ferir”? A Instrução Normativa número 3 do ano de 2000 do MAPA afirma que proibido é o sofrimento considerado desnecessário. Convém lembrar que a própria norma faz exceção ao abate religioso Halal e Kosher, porém no Direito uma autorização administrativa (que é o caso da IN) não poderia contrariar uma lei (no caso o art. 32 da L.9605/98).

No art. 40 é definida a obrigação do médico veterinário em registrar em prontuário o caso que testemunhou, mesmo casos de suspeita. Além disso deve levar imediatamente ao conhecimento do CRMV. Lembrando que o código de Ética também afirma ser dever do veterinário fazer a denúncia dos casos testemunhados (o que não fere o dever de sigilo).

O art. 50 define as condutas que são maus-tratos. Mas, é importante ressaltar que não é taxativo, ou seja o veterinário poderá identificar outras práticas que causem sofrimento aos animais. Serão comentados alguns incisos desse artigo, separando os aspectos positivos e os negativos.

Aspectos Positivos:

Inc. I. É considerado crime realizar práticas veterinárias sem os devidos cuidados analgésicos ou anestésicos, o que sabemos que ocorre, em especial com grandes animais.

No inc. IV aparece o abandono de animais finalmente criminalizado. O que é importante para a proteção animal. Também tornou crime a conduta de deixar o tutor ou responsável de buscar assistência médico-veterinária quando necessária, o que é bem comum na rotina das clínicas e hospitais veterinários.

O Inc. VII torna crime deixar de adotar medidas minimizadoras de desconforto e sofrimento para animais em situação de clausura isolada ou coletiva, inclusive nas situações transitórias de transporte, comercialização e exibição, enquanto responsável técnico ou equivalente. São corriqueiras as situações quando são flagrados animais sofrendo pelas condições que se encontram. Importante que a norma trouxe as questões das exposições, feiras e lojas de venda. Com certeza será de grande apoio para as denúncias nesses casos. Importante que não há exceção quando se trata do responsável técnico (diferente do inc. X)

VIII – manter animal sem acesso adequado a água, alimentação e temperatura compatíveis com as suas necessidades e em local desprovido de ventilação e luminosidade adequadas…Esses casos são comuns, logo proporcionará a melhor fundamentação de queixas e denúncias. Então será crime a restrição da dieta e de luminosidade para fazer a “muda forçada” que ocorre na criação de galinhas poedeiras. Também na criação industrial são comuns o estresse térmico nos animais.

Inc. IX torna crime manter animais de forma que não lhes permita acesso a abrigo contra intempéries. Mais um dispositivo que facilitará as denúncias nos casos que o tutor não proporciona condições ambientais adequadas à espécie, quando animais estão sujeitos, especialmente ao estresse térmico, seja ao frio ou ao calor, por falta de ventilação ou sombra.

O inciso X torna crime manter animais em número acima da capacidade de provimento, ou seja condições de superlotação, quando os animais ficam estressados e têm seu bem-estar reduzido. O dispositivo abre exceção para os casos transitórios de transporte e comercialização. Não raramente os animais brigam, se mutilam e se canibalizam. Também diz respeito aos abrigos de animais abandonados e sem lar. Mas por óbvio que poderá ocorrer em uma situação doméstica também.

XI – manter animal em local desprovido das condições mínimas de higiene. Nesse tópico merece salientar que muitos abrigos de cães e gatos poderão incorrer em crime se por superlotação ou falta de cuidados deixarem os animais em más condições de higiene.

O inc. XII trata da conduta de impedir a movimentação ou o descanso de animais. O que pode ocorrer em muitas formas de confinamento na criação de animais de fazenda ou de abrigos de animais abandonados. Também com animais em cativeiro ou presos em correntes. Mas e os animais nos museus, zoológicos e parques aquáticos? Já a falta de descanso ocorre nos casos de animais de trabalho, esportes e entretenimento. O que implica em grande importância na atuação dos Responsáveis Técnicos. Lembrando que se estes não cumprirem sua função serão também responsabilizados pelo crime de maus-tratos junto com o agressor.

Inc. XIV afirma ser crime submeter ou obrigar animal a atividades excessivas, que ameacem sua condição física e/ou psicológica, para dele obter esforços ou comportamentos que não se observariam senão sob coerção. Esse tipo penal trata dos casos de adestramento ou treinamento acima da capacidade física do animal levando a casos de exaustão, o que não é raro em competições esportivas e práticas de lazer ou as chamadas “culturais” como provas de laço e outras. Além do estresse psicológico como ocorre nos rodeios. Também as várias formas de castigos (reforço negativo) usados nos circos, por exemplo. O inc. XXII também torna crime o uso de métodos punitivos com finalidade de treinamento, exibição ou entretenimento.

O inc. XV torna crime submeter animal, observada espécie, a trabalho ou a esforço físico por mais de quatro horas ininterruptas sem que lhe sejam oferecidos água, alimento e descanso. Nesse dispositivo chama atenção o número de horas, pois é arriscado determinar de forma arbitrária o tempo, pois as necessidades variam conforme características individuais, de espécie, raça ou mesmo da prática que é realizada.

Conforme o inc. XVII é crime também transportar animal em desrespeito às recomendações técnicas de órgãos competentes de trânsito, ambiental ou de saúde animal ou em condições que causem sofrimento, dor e/ou lesões físicas. Visto a quantidade de animais que são transportados pela indústria é um tipo penal que talvez proporcione alguma proteção aos animais de fazenda.

O inc. XVIII torna crime adotar métodos não aprovados por autoridade competente ou sem embasamento técnico-científico para o abate de animais. Finalmente, denúncias poderão ser feitas nesses casos, pois há muitos abatedouros que não respeitam a IN 3/2000 que normatizou o “abate humanitário”. Além de usar instrumentos que provocam dor e sofrimento nos animais durante o manejo. Assim, os fiscais ou qualquer cidadão poderá denunciar por crime, além da responsabilização administrativa.

XIX – mutilar animais, exceto quando houver indicação clínico-cirúrgica veterinária ou zootécnica. Ratificou o que o CFMV já havia disposto anteriormente.

Inc. XXIII – é crime utilizar agentes ou equipamentos que inflinjam dor ou sofrimento com o intuito de induzir comportamentos desejados durante práticas esportivas, de entretenimento e de atividade laborativa, incluindo apresentações e eventos similares. O que ocorre em algumas modalidades de rodeios e alguns tipos de exposições, por exemplo.

O inc. XXIV afirma ser crime submeter animal a eventos, ações publicitárias, filmagens, exposições e/ou produções artísticas e/ou culturais para os quais não tenham sido devidamente preparados física e emocionalmente ou de forma a prevenir ou evitar dor, estresse e/ ou sofrimento. Esse dispositivo é bem interessante, pois são comuns os abusos nessas atividades. Aqui se enquadram as feiras e exposições, logo, vamos aguardar se a Resolução será efetiva ou será “letra morta”.

Inc. XXV – fazer uso e/ou permitir o uso de agentes químicos e/ou físicos para inibir a dor ou que possibilitam modificar o desempenho fisiológico para fins de participação em competição, exposições, entretenimento e/ou atividades laborativas. Agora é crime de maus-tratos o famoso dopping, uma prática que é comum em muitas modalidades esportivas, inclusive realizada por médicos veterinários.

O inc. XXVI torna crime utilizar alimentação forçada, exceto quando para fins de tratamento prescrito por médico veterinário. Um bom exemplo é o foie gras, logo devemos esperar que a prática seja proibida. Isso também ocorre com bovinos de leite em competições de produção de leite, quando são alimentados à força por sonda para produzir mais leite naquele dia.

O inc. XXVII criminalizou a instigação, criação e manutenção de animais para briga. Apesar da rinha de galos já ser considerada crime pelo STF, não havia previsão legal sobre a rinha de cães ou outras espécies.

XXVIII – estimular, manter, criar, incentivar, adestrar, utilizar animais para a prática de abuso sexual. Finalmente, se tornou crime a zoofilia. Não é porque uma prática é tolerada por parte da sociedade que deve ser aceita moralmente. É uma forma de abuso do animal que é um ser vulnerável.

XXIX – realizar ou incentivar acasalamentos que tenham elevado risco de problemas congênitos e que afetem a saúde da prole e/ou progenitora, ou que perpetuem problemas de saúde pré-existentes dos progenitores. Outro dispositivo bem interessante, visto a quantidade de criatórios ilegais ou no mínimo desonestos, que acabam por criar animais doentes para vida toda. Esperemos para ver como se dará o cumprimento e fiscalização. Mas certamente proporcionará fundamentação para denúncias. O responsável técnico desses criatórios será responsabilizado também.

Aspectos negativos:

Admitir o sacrifício de animais sinantrópicos por motivos econômicos.

– Inc. X afirma ser crime manter animais em número acima da capacidade de provimento de cuidados para assegurar boas condições de saúde e de bem-estar animal, exceto nas situações transitórias de transporte e comercialização. O dispositivo abre exceção para o transporte e comercialização, ou seja, nesses casos não há preocupação com o bem-estar? Não parece coerente. Afinal, sabe-se que animais ficam por muitas horas em transporte e expostos em feiras, situações que são críticas em relação ao bem-estar.

O § 2º afirma que “Sistemas produtivos ou de experimentação (ensino e pesquisa) que utilizam alojamento que restringem severamente a movimentação e expressão de comportamentos naturais, a exemplo gaiolas, celas, baias e práticas de manejo, serão tolerados enquanto estes sistemas forem legalmente permitidos”. Esse dispositivo é incompatível com outros vários da própria Resolução. Uma óbvia exceção para beneficiar a criação industrial de animais e a pesquisa científica com o uso de animais, indo de encontro com os esforços que são feitos para melhorar a vida dos animais nesses segmentos. Em geral, as regras técnicas são ultrapassadas ou feitas por órgãos que visam exclusivamente a produtividade. Nem sempre o que é legal é justo ou moralmente aceitável.

Considerações finais

De certo que há mais aspectos que comemorar considerando que é uma norma bem-estarista, o que não poderia ser diferente diante do atual contexto sociocultural. O fundamental é que ratifica o importante papel do médico veterinário nos casos de maus-tratos aos animais e será de grande valia na fundamentação das queixas e denúncias das inúmeras práticas que submetem os animais ao sofrimento, seja físico ou psicológico. Infelizmente, ainda percebemos que os animais de fazenda não têm a mesma proteção que os pets. Mas estamos avançando e o fato de surgirem normas de proteção denota uma maior preocupação da sociedade com o assunto.