Carroças em pleno século XXI?

O cavalo há muito esteve junto ao homem. No meu TCC citei a frase “onde tem a mão do homem, há a pegada do cavalo”. Uma espécie admirada pela sua beleza e inteligência. Serviu a humanidade e foi tão importante quanto o automóvel é hoje. Porém, infelizmente, em pleno século XXI ainda testemunhamos carroças sendo puxadas por cavalos e disputando espaço na loucura do trânsito das grandes cidades. Um drama do cotidiano que desperta debates acalorados. Nós que defendemos os animais de toda forma de exploração e sofrimento, não compactuamos com tal prática. Porém, isso não permite concluir que não nos sensibilizamos com a situação não menos dolorosa dos seres humanos que são obrigados a tirar seu sustento de tal atividade. São duas faces da mesma moeda. É mais uma forma de violência comum contra aqueles que são vulneráveis e menos favorecidos (Teoria do Link). 

Alguns poderão argumentar, de forma superficial, ingênua, equivocada ou, quiça, maliciosa, que é uma forma de sustento para as famílias envolvidas ou de se trata de uma prática cultural e que haveria discriminação na proibição das carroças. Todos argumentos refutáveis e incompatíveis com a legislação e princípios vigentes, sejam de Direitos Humanos ou de Direitos Animais. 

Felizmente, várias cidades vêm proibindo a prática, seja quando usada por catadores de resíduos ou em cidades turísticas no mundo afora. Todavia, algumas incluem em suas leis prazos longos de transição (vários anos), outras tem um frágil sistema de fiscalização, o que acaba por comprometer a efetividade das leis. 

Enfim, o caminho é longo e tortuoso, porém, a luta segue e contamos com a classe médica veterinária e o ativismo dos estudantes, pois somos testemunhas do sofrimento que essa prática atrasada causa aos cavalos. Concluo, afirmando que não é um debate simplista, é multidisciplinar, pois envolve áreas das ciências veterinárias, da saúde pública, da segurança pública e do trânsito, das ciências sociais, do trabalho, do vínculo humano-animal etc. No entanto, também afirmo que cabe à sociedade e ao poder público reconhecer que é uma prática atrasada e imoral nos dias atuais, que submete os envolvidos a situação degradante e inaceitável, portanto devem ser tomadas as medidas proporcionais para que não se perpetue, pois temos o dever moral de combater a perpetuação de todas as formas de violência para alcançarmos o ideal de uma civilização civilizada.  

 

Uso de cavalos em carroças (livro ética e bem-estar animal, 2013). 

 

Infelizmente, ainda observamos esse veículo de tração animal circulando pelas ruas. A cidade de Porto Alegre, como outras grandes cidades, apresenta um grande número de carroças puxadas por cavalos. E não há dúvida de que muitos animais usados nesse tipo de serviço são submetidos a carga de esforço excessiva, seja pelas longas jornadas de trabalho, pelas condições climáticas adversas ou pelo peso que têm de carregar. Podem carregar até 300 quilos na carroça, e muitas vezes não possuem condições físicas, corporais e de saúde para suportar a exigência de seus tutores. Além disso, muitas vezes são expostos à violência do chicote e às ameaças associadas ao trânsito. Assim, é possível concluir que são privados de praticamente todas as cinco liberdades. Em Porto Alegre, foi promulgada a Lei nº 10.531/2008, que proibiu a circulação de carroças na cidade de forma gradual até o ano de 2016 e instituiu que fossem criados meios alternativos para absorver a mão de obra que se beneficia desse meio. Em 2008, a Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) divulgou a estimativa de que 30 mil pessoas dependiam desse sistema. Seriam, aproximadamente, 8 mil cavalos e 12 mil carroceiros nas ruas. No entanto, até o momento, pouco foi feito, pois ainda é possível ver as carroças circulando pelas ruas da cidade. Também em São Paulo e no Distrito Federal foram aprovadas leis, porém a fiscalização é ineficaz e complacente. 

Sobre esse assunto, proponho uma reflexão. É comum surgirem os que defendem a tração animal como forma de transporte, considerando ser ela uma forma de sustento às famílias menos favorecidas. Afinal, é da coleta e da venda de resíduos que muitas delas conseguem algum dinheiro. Esse tipo de transporte seria, assim, considerado um sistema “beneficente” de produção. Todavia, peço que olhemos a cena por outra perspectiva. Não podemos nos deixar iludir pela falsa imagem caridosa, que esconde um sistema cruel e desumano de exploração. Por trás das cenas a que já nos acostumamos e com que nos dessensibilizamos, há um flagrante desrespeito ao bem-estar dos animais, aos direitos das crianças, à saúde e à dignidade do ser humano. A reciclagem do lixo ou, mais apropriadamente, de resíduos sólidos, apesar de uma alternativa sustentável, é uma fonte lucrativa para um setor do mercado. Os catadores acabam por fazer um trabalho insalubre sem as mínimas condições de segurança, sem remuneração condizente, sem nenhum benefício trabalhista e sem nenhum de seus direitos trabalhistas respeitados. E o pior: alguém lucra muito com a necessidade alheia. 

É uma indústria que fatura com a informalidade, com a omissão do poder público e da sociedade. Essa exploração de animais e de pessoas marginalizadas do sistema econômico pelo setor privado é compactuada com a inação das prefeituras, que deveriam ser as verdadeiras responsáveis por recolher nosso lixo, pois pagamos nossos impostos. Assim, contribuem para que crianças, que deveriam estar brincando em casa ou estudando na escola, estejam conduzindo um animal por entre carros, e correndo o risco de sofrerem e causarem graves acidentes. Há ainda o lixo que os catadores deixam pelas ruas ou são depositados em locais impróprios. Para se ter uma dimensão do mercado que essa atividade representa, vale lembrar que em Porto Alegre, por exemplo, são produzidas cerca de 1,2 mil toneladas de lixo por dia, e que, de cada quilo, são reciclados 700 gramas. Logo, os chamados “piratas do lixo”, a “máfia ou os barões do lixo”, que são os atravessadores e mercadores dos resíduos, exploram os catadores. Segundo informações fornecidas em 2008 ao jornal Extra Classe pelo presidente da Associação Especial dos Carroceiros, vereador Adeli Sell, quando deveriam ser recolhidas 400 toneladas/dia, somente 60 toneladas eram recolhidas via DMLU. Nas palavras de Sell: “[…] não cabe, em pleno século XXI, termos pessoas catando lixo nas ruas, rasgando sacos para ver o que há dentro, espalhando sujeira pela cidade, quando a coleta deve ser pública, função esta do DMLU” (VIZZOTTO, 2008). 

Ao fazermos o julgamento moral das atitudes dos carroceiros, criadores ou de outros trabalhadores envolvidos com o trato de animais de trabalho, devemos considerar o contexto sociocultural no qual eles foram criados e vivem. Jordão, Faleiros e Neto (2011) salientaram que esforços devem ser feitos para melhorar a vida dessas pessoas, além de investimentos na educação de novas atitudes e novos comportamentos. Waiblinger et al. (2006) lembraram a importância de desenvolver nas pessoas a percepção de que aqueles que trabalham com os animais são guardiões de vida e não carcereiros de uma prisão. 

Jordão, Faleiros e Neto (2011) relatam que esse é um problema comum aos países em desenvolvimento. Nesse contexto, as ONGs e a classe veterinária têm a obrigação moral de exercer pressão no poder público por alternativas e soluções. Os autores consideraram a alternativa de proibir o uso de carroças uma opção radical e com graves consequências socioeconômicas para os usuários do meio de tração. 

Reafirmo que, antes de tudo, essa é mais uma de nossas mazelas sociais. É, pois, importante que tenhamos uma visão mais clara sobre o tema e um posicionamento para que possamos exercer pressão nos órgãos responsáveis. Não podemos deixar de discutir o risco de zoonoses para essas pessoas que estão trabalhando diretamente com esses animais que estão sendo mantidos em um alto grau de estresse, em condições insalubres e sem a assistência veterinária. Afinal, temos que repensar como nossas atitudes fomentam esse sistema e discutir sobre os interesses associados à manutenção destas engrenagens que sustentam um amplo espectro de exploração. 

 

Texto: Renato Silvano Pulz