02/10/20

Medicina de abrigos e a expansão do círculo de compaixão

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A Medicina de Abrigos (Shelter Medicine) é uma grande área que inclui diversas disciplinas como cirurgia, clínica médica, comportamento, controle populacional, epidemiologia, controle de doenças infecciosas, saúde pública, perícia veterinária, anestesiologia, medicina preventiva, antrozoologia (vínculo-humano animal), manejo de dor, projeto de instalações, resgate e captura de animais, implementação e desenvolvimento de políticas públicas. 

Essa grande área está sendo muito difundida nos EUA, onde há veterinários que são empregados em abrigos locais e também em clínicas de vacinação e castração. Isso inclui trabalho a campo e também em clínicas móveis, que oferecem alguns procedimentos por preços mais acessíveis ou até gratuitos. O veterinário que atua em Medicina de Abrigos difere do veterinário que atua na clínica particular, uma vez que o veterinário de abrigo lida com um número maior de animais e de diferentes espécies. Além disso, muitos dos animais que entram nos abrigos chegam com pouco ou nenhum histórico médico. É uma população com maior risco de doenças infecciosas e apresenta geralmente problemas comportamentais. Os veterinários de abrigos se dedicam a trabalhar com populações de animais e humanos em situação de vulnerabilidade e isso inclui animais que sofreram maus-tratos, abandono, animais não domiciliados como animais comunitários e ferais.

Medicina de Abrigos e Medicina Veterinária do Coletivo

A necessidade de incorporar essa área no currículo da veterinária ocorreu no começo do anos 2000, quando foi criada a Associação de Veterinários de Abrigos (Association of Shelter Veterinarians). O primeiro programa de residência em medicina de abrigos dos EUA foi desenvolvido em 2001 pela Universidade da Califórnia, Davis. A primeira prova de certificação para título de especialista na área foi realizada em 2015. Portanto, foi muito recente a formalização da existência desse profissional na medicina veterinária. No Brasil, a Medicina de Abrigos foi incorporada em uma grande área denominada Medicina Veterinária do Coletivo que abrange também outras grandes áreas como Saúde Única e Medicina Veterinária legal. A Universidade Federal do Paraná (UFPR) é uma das pioneiras no Brasil em oferecer esse programa de residência. 

A Medicina de Abrigos vem se adaptando e com a pandemia o significado de Medicina de Abrigos está se aproximando da proposta da iniciativa Medicina Veterinária do Coletivo que foi implementada no Brasil. Os abrigos nos EUA estão recebendo cada vez mais auxílio das comunidades e população e hoje há muitos animais em lares temporários que antigamente.  Veterinários que trabalham em abrigos estão atuando mais diretamente em diversas frentes para manter a saúde animal e saúde humana, e assim direcionando seus trabalhos na iniciativa de saúde única. As comunidades estão ativamente participando no encontro de possíveis adotantes para os animais nos abrigos e também auxiliando na criação de alternativas que facilite o processo de adoção neste período de distanciamento social. Embora, existam projetos que ofereçam serviços veterinários gratuitos nos dois países, não existe um sistema de saúde público e gratuito como o SUS para animais, como vemos para saúde humana no Brasil. 

As mudanças nos valores estruturais da Medicina de Abrigos

Para muitos, a palavra abrigo, principalmente no Brasil, tem uma conotação negativa, uma vez que há uma linha tênue entre abrigos e acumulação de animais. Casos de acumulação, há uma superpopulação de animais e isso acomete o bem-estar desses animais e muitos deles estão em situações deploráveis. Além disso, acumuladores geralmente não doam os animais e os locais se tornam uma residência definitiva para aqueles animais. Já os abrigos estão comprometidos a doarem os animais e esses locais são residências temporárias para os animais. 

Com o passar do tempo, os abrigos que eram cinzentos e sujos, que recolhiam animais e assim proteger os humanos dos animais, se tornaram locais onde os animais possam se reabilitar e encontrar sua nova família. Abrigos dão suporte e assistência para que os animais se estabeleçam e os abrigos são esperança para aqueles animais que perderam tudo, seus lares, seus membros familiares humanos e animais. Observa-se um direcionamento das campanhas dos abrigos nas redes sociais para a promoção do vínculo humano-animal, do bem-estar animal, como também da saúde animal e humana. Informações que podem afetar a relação humano-animal, como zoonoses, são cuidadosamente escritas por diversos profissionais para evitar a demonização de animais.     

As mudanças na Medicina de Abrigos estão conectadas aos movimentos humanitários e também às culturas associadas às organizações que gerenciam os abrigos. Por um lado, temos as faculdades de medicina veterinária que estão fortemente ligadas à produção animal e colocam o animal como mercadoria e de outro lado, temos as organizações que gerenciam os abrigos que muitas vezes veem os animais como indivíduos. Um exemplo muito interessante é a influência da cultura organização chamada Best Friends Animal Society. Essa organização foi pioneira do movimento no kill shelter que promove a ideia que os animais de abrigos não sejam eutanasiados. Essa mesma organização tem a diretriz de só oferecer comida vegana ou vegetariana em seus eventos e dessa forma ampliar a compaixão a todos animais, incluindo aqueles que são associados como comida para a maioria da sociedade. A campanha Food for Thought tem programas que auxiliam abrigos e também outras entidades a incorporarem diretrizes que valorizem a vida de todos os animais com a adoção de um cardápio vegano em eventos. Aqui você encontra a lista de organizações agraciadas pela campanha Food for Thought

A empatia aos humanos e aos animais são muito valorizadas na Medicina de Abrigos e o movimento como Fear Free (livre de medo) que promove empatia, desenvolveu um curso especializado, Fear Free Shelters, para profissionais que trabalham em abrigos.  

Os abrigos também recebem outros animais como ratos, hamsters, coelhos, porquinhos-da-índia, pássaros e atualmente, muitos desses animais estão recebendo tratamentos mais atenciosos e mais adequados. Também é possível encontrar cavalos, cabras, porcos, galinhas e outros animais que são encontrados nas fazendas. Esses animais também são abandonados e precisam de um local de refúgio para se restabelecerem. Há abrigos que são especializados em coelhos, em ratos, em porquinhos-da-índia. Eu trabalho há mais de 2 anos como voluntária em um abrigo especializado em coelhos, San Diego House Rabbit Society

Eu, Isabelle, com um dos coelhos do abrigo da San Diego House Rabbit Society.

A importância da disseminação da Medicina de Abrigos no Brasil

No Brasil, estima-se que há aproximadamente 30 milhões de animais abandonados, 170 mil vivendo em abrigos e 4 milhões de animais vivendo em condições de vulnerabilidade. Nós veganos encontramos na medicina de abrigo uma esperança para os animais e também para os animais humanos; e é muito comum encontrar veganos, vegetarianos e simpatizantes trabalhando nessa área. Infelizmente, a informalidade das situações de abrigos no Brasil, a falta de verba destinada a causa animal e a desvalorização do médico veterinário dificultam a incorporação dessa disciplina nos currículos das faculdades no Brasil. 

Sabemos que a Medicina Veterinária do Coletivo está ganhando espaço no Brasil e portanto, a Medicina de Abrigos ganha oportunidade para ser também conhecida. É importante que as pessoas entendam que a Medicina de Abrigos não se trata de uma área destinada somente a animais que estão no abrigo. Essa área é interdisciplinar e nós médicos veterinários temos oportunidades de trabalhar com as comunidades, com os protetores e com diversos outros profissionais como treinadores, promotores de eventos, publicitários, designers, cientistas, filósofos, captadores de recursos, sociólogos, advogados entre muitos outros. Esse trabalho conjunto é essencial para que os animais se recuperem, sejam respeitados e encontrem seus espaços. Por mais que existam similaridades entre a Medicina Veterinária do Coletivo e a Medicina de Abrigos, eu espero que a Medicina de Abrigos ganhe seu destaque no território brasileiro e que a compaixão se amplie a todos indivíduos. 

Conheça o projeto “Quarentena Pet” que promove o conceito de Medicina de Abrigos nas periferias de Fortaleza, Ceará. Este projeto que foi idealizado pela médica veterinária vegana, Amanda Luiza, e conta com a parceria da UIPA-CE e com nosso apoio financeiro e também da ONG “The Pollination Project”.  

Visita de Amanda em um dos abrigos de Fortaleza, Lar TinTin.

Referências: clique nos links

Texto: Isabelle Tancioni


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