24/07/20

Transporte marítimo de bovinos por longas distâncias

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A exportação de bovinos vivos, em especial para países do oriente médio, vem crescendo. Porém, devido às suas características a prática despertou movimentos em defesa dos animais, o que culminou em uma ação na justiça federal, pela ONG, Fórum Nacional de Defesa e Proteção Animal, pedindo a suspensão da prática em todo território nacional, quando foi feito um laudo por uma médica veterinária autônoma (disponível aqui). Ocorre que esse movimento vem acontecendo em vários países do mundo, não só no  Brasil.  

O caso em questão envolveu o embarque de 27.000 bovinos com destino para a Turquia. O juiz concedeu uma liminar determinando a proibição do embarque, porém a liminar foi cassada e o embarque permitido. É Importante destacar o parecer do Ministério Público Federal sobre o tema.

Em resumo, de um lado temos o setor da pecuária, as Associações de exportadores, os órgãos públicos e o próprio Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento defendendo a exportação e se esforçando em mostrar as regulamentações e o seu fiel cumprimento, tanto sanitárias como de bem-estar animal. De outro lado, parte da sociedade civil e associações de defesa animal salientando como o sofrimento dos animais é inerente à prática, ou seja, não há forma de realizá-la sem que os animais sofram. Mas de certo não é um debate fácil, pois a medicina veterinária está estreitamente ligada à produção animal (leia o Paradoxo da Medicina Veterinária), além disso a própria Instrução Normativa nº 3 de 2000 do MAPA)  que  regula o “abate humanitário” e permite a exceção para o abate halal ou kosher em território nacional. 

Tive a oportunidade de participar em audiência judicial, quando além dos argumentos técnicos sobre o sofrimento inerente, pedimos ao juiz que fosse permitido nas viagens a presença de médicos veterinários independentes e que fossem feitos registros (o que não acontece atualmente). O controle argumentado pelos órgãos oficiais brasileiros é realizado somente até o embarque, pois depois a responsabilidade é considerada obrigação do importador. Os bovinos vêm de várias regiões do país e viajam vários dias por rios ou estradas até chegarem aos portos. Nas viagens marítimas, em geral, com mais de 20.000 bovinos e duração média de 15 a 20 dias, estarão a bordo de um a três médicos veterinários. No navio “Nada” do caso em tela, com 27.000 bovinos seria um veterinário somente (salvo tenha mudado depois).   

 

Considerações sobre bem-estar de animais de fazenda

Antes de mais nada é fundamental salientar que os animais de fazenda, como são os ruminantes, em especial os bovinos, sempre foram criados de uma forma diferente daquela do cão e do gato, o que se traduz em uma relação mais distante, na qual a sociedade atribui outro valor a estas espécies. Historicamente esses animais foram negligenciados e subestimados em relação a dor e seu comportamento. Esse fenômeno é reconhecido e bem estudado, inclusive na formação e atuação dos médicos veterinários. É resultado da falta de conhecimento sobre o comportamento natural da espécie, que culmina negativamente na interpretação da presença de sinais de medo, dor e sofrimento desses animais.

Porém, atualmente, há evidências que mostram a capacidade de sofrimento dos bovinos, então é fundamental ressaltar que, diferente do senso comum, os bovinos sentem dor e sofrem psicologicamente, tanto quanto outras espécies de mamíferos. Para a ciência os ruminantes são tão sencientes como são os cães e gatos que habitam o interior de nossos lares. Inclusive, vale lembrar, que em 2012 a comunidade científica internacional reconheceu no Manifesto de Cambridge que os animais possuem consciência. 

 

Considerações sobre como o transporte marítimo por longas distâncias  pode afetar o bem-estar de bovinos e a ocorrência de enfermidades 

1. Bovinos tem comportamento de ‘presa’, por isso foram historicamente negligenciados e subestimados em relação ao seu sofrimento físico e emocional. Assim, não é raro que o medo e angústia sejam subestimados.  

2. O transporte, por si só, como fator estressante. Isso é agravado pelas  condições e longas distâncias. Fatores que esgotam a capacidade de adaptação dos animais e provocam respostas fisiológicas compatíveis com quadro de sofrimento, como as variações de temperatura corporal, os níveis de cortisol, que resulta em Imunodepressão, predispondo a uma série de doenças. Exaustão física, traumas, os distúrbios comportamentais, como agressividade, depressão, vocalização, perda de apetite etc.  

3. A superlotação é comum nesse tipo de transporte e prejudica o bem-estar de várias formas: pelo excesso de dejetos, pela privação de espaço e movimentação, por interferir na produção e dissipação de calor no ambiente, por predispor a disputas e brigas relacionadas a comportamento hierárquico, resultando em traumas e ferimentos. O reduzido espaço e restrição de movimentos foi relatado no laudo apresentado pela médica veterinária Magda Regina.

4. A privação do comportamento de se autolimpar, que é inato e natural das espécies. É sabido que há sofrimento emocional quando o animal não consegue expressar seu comportamento natural, o que acontecerá inevitavelmente nas condições de transporte por vários dias, onde o contato com o excesso de dejetos supera a capacidade dos animais de se limparem.    

5. O contato com os seus dejetos além de predispor a doenças, quando em grande parte do corpo interfere diretamente na dissipação do calor, um dos grandes causadores de redução e bem-estar. 

6. Os dejetos e más condições de higiene também são responsáveis por doenças dos cascos que acometem os bovinos e causam intensa dor, sendo importante causa de redução do bem-estar.

7. Contaminação de água e alimentos pelas fezes. Dieta artificial. Doenças do trato digestório são comuns, como timpanismo do rúmen e diarreias.  

8. O estresse térmico é uma das maiores causa de redução de bem-estar no transporte. As condições de higiene nesse tipo de transporte, pode afetar consideravelmente a temperatura corporal dos animais. 

9. Importante considerar a presença do excesso de dejetos, considerando que um bovino, variando tamanho e dieta, produz de 20 a 40 kg de fezes/dia. Urina cerca de 10 vezes/dia produzindo de 10 a 20 litros. Tudo isso multiplicado por 27.000 bovinos por dia. Assim por baixo, teremos uma produção diária de 540.000 kg de fezes e 2.700.000 litros de urina.

10.  A ventilação inadequada de algumas partes da embarcação está relacionada a redução de bem-estar por dificultar a dissipação do calor. Hipertermia e intermação. 

11. A potencial movimentação da embarcação frente às intempéries do mar podem provocar quedas e consequentes traumas e fraturas

12. O excesso de amônia presente nos dejetos é causador de irritação das vias aéreas e consequentes doenças relacionadas. As doenças respiratórias são comuns. Dermatites e doenças dos cascos (manqueiras) pelo contato excessivo com dejetos (fezes e urina).

13. Também a poluição sonora como fator estressante. Ressalte-se que serão muitos dias submetidos a esse fator.  

14. A taxa de mortalidade. Importante ressaltar que apesar de alguns autores afirmarem que a taxa de mortalidade é baixa (menor que 1%), essa é mais alta no mar em comparação com o mesmo período de transporte em terra. Além disso, esse indicador não pode ser usado isoladamente para avaliar bem-estar. A avaliação deverá  envolver um conjunto de indicadores físicos e comportamentais

 

Considerações finais

1. Não há fiscalização durante o transporte em alto-mar, logo não há como garantir que sejam oferecidas condições de bem-estar aos bovinos.

2. Não há protocolo estabelecido para a avaliação do bem-estar durante o transporte marítimo. O sofrimento dos bovinos pode ser identificado de forma objetiva por indicadores físicos e comportamentais

3. A fiscalização deveria ser realizada por um órgão ou profissional independente e autônomo.

4. Os órgãos públicos sofrem pressões políticas e econômicas. 

5. É pobre o bem-estar desses animais nas condições de transporte marítimo por longas distâncias.

6. Por ser um sofrimento desnecessário caracteriza a figura de maus-tratos (conforme art. 20, inc. II da Resolução 1236/2018 do CFMV).  

7. Eu sempre faço um exercício com os alunos: você aceitaria que seu cão ou gato fosse submetido às referidas condições, ou seja, a viagem marítima por longas distâncias nas condições de confinamento, mudança de dieta, falta de higiene e ventilação, estresse térmico, entre outras. Se não, se você acha que ele estaria sofrendo, é bem provável que determinada prática caracterize maus-tratos. Fica a reflexão.

8. O Estado brasileiro não pode se isentar sobre as condições do transporte no mar internacional. É inegável que estaremos compactuando com a prática, mesmo que as regras contratuais indiquem responsabilidade do comprador. Será que é o desejo da sociedade brasileira? Ou do interesse de um setor que lucra com a atividade?  

 

Renato Silvano Pulz 


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